A espiritualidade frequentemente sai pela janela no instante em que entramos em uma discussão, tropeçamos em uma crise ou caímos em depressão.



A escuridão toma conta tão rapidamente que esquecemos de tudo que aprendemos.



É por este motivo que é bom estudar diariamente, ler uma passagem da torah ou algum texto inspirador, decorar uma citação ou assistir uns minutos de uma palestra para nos lembrarmos do que é realmente importante.



Dê a sua mente algo para mastigar, para que ela não mastigue a si mesma.



Yehuda Berg


segunda-feira, 2 de abril de 2012

A Idade do Universo


A questão da idade do universo tem sido discutida em círculos de estudo da Torá por mais de um século.
A Torá parece ensinar que o universo não tem mais que seis mil anos.
Na verdade, muitas pessoas diriam que qualquer opinião que afirme que o universo
tem mais de seis mil anos necessariamente contradiz a Torá.
Por outro lado, parece haver um grande número de provas baseadas em observação de que o universo tem muito mais de seis mil anos.
Uma série de abordagens foram propostas para resolver este problema, algumas das quais foram discutidas num livro publicado há alguns anos.
Nossa preocupação, contudo, não é simplesmente resolver a questão, mas fazê-lo de uma maneira solidamente baseada nos ensinamentos da Torá.
Em outras palavras, procuramos uma solução que realmente conste na literatura clássica da Torá.
 
Princípios Metodológicos
Antes mesmo de tentarmos começar a resolver este problema, devemos estabelecer alguns princípios metodológicos.
O primeiro é o mais importante.
Devemos estar plenamente conscientes do que dizem as fontes primordiais a respeito da questão. Infelizmente, as pessoas muitas vezes expressam suas próprias idéias como princípios da Torá, atribuindo a autoridade de fontes clássicas a noções às quais estas são completamente opostas.
Em segundo lugar, devemos ter em mente que não há nenhuma opinião constritiva em assuntos que não envolvam a lei judaica ou artigos fundamentais de fé.
Deve-se sempre chegar a uma conclusão final em questões haláchicas (legais), uma vez que é necessário saber como agir, mas no tocante a uma questão não haláchica, como a idade do universo, qualquer opinião encontrada numa fonte da Torá reconhecida é aceitável.
Este princípio é referido em várias passagens talmúdicas.
Por exemplo, o Talmud evita proferir uma opinião final sobre questões que envolvam os tempos messiânicos e classifica o assunto como Hilcheta Lemeshicha, “uma lei pertencente ao Messias.”
Onde não há conseqüências práticas, um veredicto final não precisa ser
proferido.
Outro exemplo é o uso no Talmud da expressão “Ambas são palavras do Deus vivo.” Esta frase aparece em dois trechos, uma vez em contexto não haláchico e outra no que diz respeito a uma discussão haláchica entre a Escola de Hilel e a Escola de Shamai.
No primeiro caso, o Talmud não profere um veredicto final (Pessac), enquanto no último ele conclui: “A lei segue a Escola de Hilel".
Novamente, em questões não haláchicas, não há necessidade de um veredicto final.
 
Pontos de Vista Intelectuais
Ao tentar resolver uma questão tão básica quanto a idade do universo, é importante não se colocar num ponto de vista intelectual.
Uma vez que a comunidade tenha tomado uma posição a respeito de um assunto - mesmo uma posição errada - voltar atrás é difícil.
Um exemplo que imediatamente vem à mente é o da existência de vida extraterrestre. Cerca de dez anos atrás, alguns eminentes rabinos expressaram a opinião de que a crença em vida fora da Terra era praticamente uma heresia. Lembro-me de ter escrito um artigo para o Intercom rejeitando essa idéia e demonstrando que gigantes como o filósofo judeu Saádia Gaon acreditavam que a vida em outros mundos se conformava totalmente aos ensinamentos da Torá.
O que muitos contemporâneos alardeavam como heresia, era uma opinião baseada na Torá perfeitamente aceitável.
Outro exemplo seria a questão do universo ser geocêntrico ou heliocêntrico. Pouquíssimos, mesmo dentre os mais conservadores judeus observantes da Torá, diriam, hoje em dia, que a crença num universo heliocêntrico contraria os ensinamentos da Torá. Mas num passado muito recente, muitos sustentavam a crença de que um mundo geocêntrico era essencial ao judaísmo?
Eu também me lembro que há cerca de trinta anos, quando eu estava na Ieshivá (academia de estudos judaicos), houve uma discussão a respeito de se mandar um foguete para a lua.
Um importante rabino defendeu com firmeza que, de acordo com os ensinamentos da Torá, não haveria como isso ser possível. Seus argumentos eram impecáveis mas, obviamente, errôneos.
É muito perigoso colocar-se num ponto de vista intelectual.
 
Abordagens Possíveis
O perigo aparece claramente em qualquer discussão sobre a idade do universo, uma vez que a questão da idade do mundo é fundamental para qualquer discussão sobre o judaísmo e a ciência. Se esta questão não for resolvida, a ciência e o judaísmo continuarão em constante confronto.
A abordagem mais simples é ignorar o problema.
Conheço um professor ortodoxo de biologia que, na sinagoga, sustenta com
firmeza que o mundo tem menos de seis mil anos, mas em classe, ensina a cronologia científica padrão. É como se ele tivesse um sistema de crenças quando está em meio a pessoas ortodoxas e outro quando está com seus colegas profissionais.
Esta pode ser a saída mais fácil, mas obviamente não é uma abordagem satisfatória.
Outra visão é a de muitos judeus ortodoxos que encaram a ciência em geral como uma fraude - principalmente por causa dessa questão específica.
Para os que mantêm esta visão, as deficiências morais dos cientistas são tomadas como provas de sua desonestidade intelectual.
Entretanto, esta também é uma abordagem totalmente insatisfatória, como fica evidente para qualquer um que tenha alguma ligação, mesmo que remota, com a ciência organizada.
Duas soluções populares enfrentam o problema diretamente:
A primeira assume que cada dia da Criação durou milhões ou até bilhões de anos. Os seis dias da Criação, sob este ponto de vista, representam os bilhões de anos que o universo demorou para se desenvolver.
Há uma série de dificuldades com esta teoria, a começar pelo fato de não haver nenhuma sugestão dela em qualquer passagem da literatura clássica da Torá.
Outra abordagem é assumir que o universo foi criado com sua “história” como um de seus elementos.
Assim, quando Deus criou as árvores, Ele as criou com anéis de crescimento que parecem indicar que elas tiveram uma extensa existência passada.
Um cientista vivendo nos primeiros séculos da Criação - prossegue o argumento -
seria capaz de discutir as “condições meteorológicas” existentes antes da Criação baseando-se nos anéis das árvores maiores. (Muito similar a esta, há a questão de Adão ter ou não umbigo.)
Se as árvores pudessem ter sido criadas com uma história aparente, todo o resto do universo também poderia.
Os genes de todas as criaturas contêm evidência de seus ancestrais, mas os genes
teriam sido criados com essa “história”.
Fósseis e formações geológicas de aparência arcaica também poderiam ter sido criados há menos de seis mil anos.
Mesmo o urânio usado para a datação radiocarbônica poderia ter sido criado com características que o fariam parecer ter bilhões de anos.
Um problema desta abordagem é que ela faz com que o Criador pareça ter perpetrado uma fraude.
Se é heresia acreditar que o mundo tem mais de seis mil anos de idade, por que Deus o criaria de maneira a induzir um observador honesto a uma opinião falsa? Isto é tanto mais sério à luz do Midrash (literatura rabínica homilética) que afirma:
"Não há falsidade no trabalho da Criação."
A teoria acima parece fazer de toda a Criação um ato de falsidade.
Além disso, o argumento é arbitrário.
Se Deus pudesse ter criado um universo com história há seis mil anos, então Ele também poderia tê-lo criado cinco minutos atrás.
Não se discute que um Deus onisciente poderia ter nos criado com todas nossas lembranças, assim como com registros e histórias retrocedendo milhares de anos. Mas então, com um Deus onipotente, tudo - não importa quão ilógico - é possível. Ainda assim, normalmente assumimos que Deus nos deu a razão e criou o mundo de maneira tal que pudesse ser entendido pela mente humana.
É claro que todos sabemos que estas objeções podem ser resolvidas.
É impossível refutar o argumento de que o mundo foi criado com uma história, e se alguém se sente confortável com ele, muito bem.
Entretanto, muitos devem sentir que este é um argumento que beira a desonestidade intelectual e a sofística, e que também é um argumento capaz de criar mais problemas do que soluções.
Mas há uma questão ainda mais séria.
Em nenhuma passagem da literatura da Torá existe a mais leve sugestão de tal possibilidade. Se não fosse pelas descobertas científicas, ninguém teria pensado em apresentar tal argumento.
Assim, ele é “ex post facto” e desprovido de base na Torá.
Na verdade, esta abordagem foi postulada primeiramente por um cientista gentio, alguns anos antes de Darwin publicar sua Teoria da Evolução.
Na época, os cientistas o encararam como um argumento tolo, mesmo antes de Darwin. Atualmente, ele não parece nem um pouco mais convincente.
Há outra questão que deve ser tratada diretamente.
Muitos grupos cristãos fundamentalistas adotaram a idéia do criacionismo, um ensinamento baseado na interpretação literal da Bíblia.
Naturalmente, uma vez que os gentios não levam em consideração a Torá Oral, sua abordagem certamente será muito diferente da nossa. Além disso, muitos de seus argumentos, foram refutados muito convincentemente por algumas das melhores mentes científicas. Para judeus ortodoxos, alinhar-se com tais grupos é tanto perigoso quanto anti Torá.
 
Ciclos Sabáticos
A única alternativa remanescente é pesquisar a literatura clássica da Torá e determinar se há qualquer afirmação pertinente relativa à idade do universo. Significativamente, há um conceito muito importante, apesar de pouco conhecido, que é discutido no Sêfer ha-Temuná, um antigo trabalho cabalístico atribuído ao tanaíta (mestre do Talmud) do primeiro século, Rabi Nechunia ben ha-Cana.
O trabalho discute as formas das letras hebraicas e é fonte de muitas das opiniões mais citadas sobre o assunto na literatura haláchica.
Portanto, o Sêfer ha-Temuná não é uma obra obscura, sem importância, mas sim uma obra em que a maioria das autoridades haláchicas confia.
O Sêfer ha-Temuná fala sobre ciclos sabáticos (Shemitot).
Isto se baseia no ensinamento talmúdico de que "o mundo existirá por seis mil anos e, no sétimo milésimo ano, será destruído."
O Sêfer ha-Temuná afirma que este ciclo de sete mil anos é apenas um ciclo sabático. Contudo, como há sete ciclos sabáticos em um jubileu, o mundo está destinado a existir por quarenta e nove mil anos.
Há uma dúvida a respeito de qual ciclo estamos vivendo hoje.
Algumas autoridades opinam que estamos atualmente no segundo ciclo sabático. Outros defendem a opinião de que estamos atualmente no sétimo ciclo.
De acordo com esta opinião, o universo teria 42 mil anos de idade quando Adão foi criado. Como veremos, as implicações disso são muito importantes.
Antes de prosseguir, deve ser mencionado que a maioria dos textos cabalísticos mais recentes não mencionam esses ensinamentos.
Isto porque dois dos maiores cabalistas recentes — o Rabino Moisés Cordovero (o "Ramac") e o Rabino Isaac Luria (o "ARI") rejeitavam este conceito em geral. Assim, o autor de Vaiac'hel Moshe escreve: "Podemos ver a grandeza do Ari, pois havia uma opinião (relativa a ciclos sabáticos) que havia sido aceita por todos os antigos cabalistas, mas que foi rejeitada pelo 'Ari'." Aqui, contudo, o segundo princípio discutido anteriormente entra em ação. Uma vez que isto não é assunto para a lei, não há opinião constritiva. Embora o "Ari" possa ter sido o maior dos cabalistas, sua opinião sobre o assunto de maneira alguma é absolutamente restritiva. Uma vez que havia muitos cabalistas importantes que defendiam o conceito de ciclos sabáticos, esta é uma opinião válida e aceitável.
De acordo com o Sêfer ha-Temuná, portanto, houve outros mundos antes de Adão ter sido criado. Estes eram os mundo de ciclos sabáticos anteriores. Significativamente, há uma série de referências a esta abordagem no Midrash. Assim, comentando o versículo "E foi tarde e foi manhã: dia um" (Gênesis1:5), o Midrash Rabá afirma: "Isso ensina que houve ordens de tempo antes desta."
Outro ensinamento do Midrash bastante conhecido também parece apoiar o conceito de ciclos sabáticos.
O Midrash declara que "Deus criou universos e os destruiu."
Um dos importantes trabalhos cabalísticos clássicos, Maaréchet Elocut, declara explicitamente que esta passagem se refere a mundos que existiram nos ciclos sabáticos anteriores à criação de Adão.
A mesma fonte afirma explicitamente que o ensinamento midráshico de que "houve ordens de tempo antes desta [Criação]" também está falando de ciclos sabáticos anteriores.
Um trecho talmúdico parece substanciar esta visão de ciclos sabáticos.
De acordo com o Talmud - e alguns Midrashim também-houve 974 gerações antes de Adão.
Este número deriva do versículo "Ele se lembra da Sua aliança para sempre, a palavra empenhada para mil gerações" (Salmo 105:8). Isto indicaria que a Torá estava destinada a ser revelada depois de mil gerações.
Como Moisés era da 26a geração depois de Adão, deve ter havido 974 gerações antes de Adão.
O Maaréchet Elocut afirma explicitamente que estas gerações existiram nos ciclos sabáticos anteriores à criação de Adão.
O conceito de ciclos pré-adâmicos era bastante conhecido entre os Rishonim (antigas autoridades), e é citado em fontes como Bahya, Recanati, Tsiyoni e Sêfer ha-Chinuch.
Ele também é mencionado no livro O Cuzarí e nos comentários de Ramban e Ibn Ezra.
 
Tiféret Yisrael
Uma das mais recentes autoridades a falar sobre o conceito de ciclos sabáticos é o Rabino Israel Lipschitz, autor de Tiféret Yisrael, um comentário sobre a Mishná, a compilação da Lei Oral.
No fim da seção talmúdica de Nezikin ("Danos"), ele inclui um ensaio intitulado Derush Or Hachayim. Como esta obra fala de criações anteriores e de seres humanos existentes antes de Adão, ela foi extremamente polêmica.
Na verdade, ela foi omitida de algumas edições do comentário (e teve suas páginas arrancadas de outras!).
Além disso, por causa do Derush, uma série de grupos chassídicos não usam nada do Tiféret Yisrael.
Um dos problemas com o Derush é que o autor não cita todas as fontes.
As mais importantes são Ibn Ezra, o Ramban e Bahya, que estão entre as mais ambíguas, especialmente para quem não viu a apresentação na fonte original, o Sêfer ha-Temuná.
A abordagem do Rabino Lipschitz é muito interessante.
Ele cita a idéia cabalística de universos existentes antes de Adão e depois conclui: "Vejam como os ensinamentos de nossa Torá foram justificados pelas descobertas modernas!"
Depois ele cita achados como o de um mamute encontrado perto de Baltimore, assim como os dinossauros. Como estas criaturas não existem mais, obviamente viveram em ciclos sabáticos anteriores. Ele prossegue dizendo que cordilheiras como o Himalaia (citado nominalmente) foram obviamente formadas por grandes abalos sísmicos.
Ele conclui que estes eram os abalos especificamente mencionados no Sêfer ha-Temuná, e que esta é uma nova comprovação dos ensinamentos da Torá.
Esta declaração é muito significativa.
Hoje em dia, muitas pessoas no mundo da Tora se sentem ameaçados pelas descobertas geológicas e paleontológicas.
Elas encaram dinossauros e outros fósseis como problemas de difícil solução.
Aqui, por outro lado, um dos mais destacados estudiosos da Tora do século passado tem uma visão completamente diferente, encarando essas descobertas como confirmatórias de um importante ensinamento da Tora.
Enquanto muitos judeus ortodoxos de hoje se sentem na obrigação de desafiar toda declaração científica referente à paleontologia ou geologia, o autor de Tiféret Yisrael achava que essas descobertas ratificam conceitos da Tora.
 
Rabino Isaac de Aco
O Sêfer ha-Temuná estabelece que a idade do mundo, pelo menos de acordo com algumas interpretações clássicas, é de 42 mil anos.
Ou seja, o mundo tinha 42 mil anos quando Adão foi criado.
Este ensinamento foi matéria de uma interpretação muito significativa do Rabino Isaac de Aco (1250-1350).
Ele era um estudioso e colega do Ramban (Nachmânides), e um dos mais importantes cabalistas de seu tempo.
Ele é muito citado no grande livro clássico do Rabino Eliáhu de Vidas, o Reshit Chochmá.
O Zôhar foi publicado em sua época e ele é conhecido como o indivíduo que investigou (e ratificou) sua autenticidade.
Muitos anos atrás, como parte de um projeto de pesquisa, obtive uma fotocópia de um dos importantes trabalhos do Rabino Isaac: o Otsar ha-Chayim.
Nele descobri uma interpretação inteiramente nova do conceito de ciclos sabáticos.
O Rabino Isaac de Aco escreve que, uma vez que os ciclos sabáticos existiam antes de Adão, sua cronologia deve ser medida não em anos humanos, mas em anos Divinos.
Assim, o Sêfer ha-Temuná está falando de anos Divinos quando declara que o mundo tem 42 mil anos de idade.
Isso tem conseqüências espantosas, pois de acordo com muitas fontes do Midrash, um dia Divino dura mil anos terrestres e um ano Divino, consistindo de 365 1/4 dias, equivale a 365.250 anos terrestres.
Assim, de acordo com o Rabino Isaac de Aco, o universo teria 42.000 x 365.250 anos de idade. Isto vem a ser 15.340.500.000 anos, um número muito significativo.
Partindo de cálculos baseados na expansão do universo e outros observações cosmológicas, a ciência moderna concluiu que o Big Bang ocorreu há aproximadamente 15 bilhões de anos.
Mas aqui vemos o mesmo número apresentado numa fonte da Torá escrita há mais de setecentos anos!
Estou certo de que muitos vão achar que isto é objeto de muita controvérsia. Contudo, é importante saber que esta opinião existia em nossa literatura clássica; além disso, que um dos mais importantes cabalistas de sete séculos atrás calculou a idade do universo e chegou à mesma conclusão que a ciência moderna.
Assim, como diria o autor de Tiféret Yisrael, os estudos cosmológicos modernos confirmam nossa abordagem da Torá (em oposição, por exemplo, à abordagem fundamentalista).
 
Situando isso na Torá
Agora devemos nos perguntar onde isso se situa no texto da Torá.
Onde encontramos na Torá qualquer sugestão desses 15 bilhões de anos ou, na verdade, algum lugar onde possamos encaixá-los?
Basicamente há duas abordagens.
A primeira é a do Maaréchet Elocut, uma obra que citamos anteriormente.
De acordo com esta fonte, a Torá se cala a respeito de eventos que ocorreram durante o período em que a Terra era "vã e vazia" (Tôhu va-vôhu).
Assim, o período "vão e vazio" mencionado na Torá durou 15 bilhões de anos.
A dificuldade com esta abordagem é que os sete dias da Criação teriam então ocorrido há menos de seis mil anos.
Isso recolocaria as mesmas questões originalmente suscitadas.
Há, contudo, uma outra abordagem, referida no Talmud e no Midrash.
 
Um dos mistérios da Tora envolve os dois relatos da Criação.
O primeiro relato está registrado em Gênesis 1:1 — 2:3, o segundo em Gênesis 2:4-23.
Várias discrepâncias entre essas duas versões estão anotadas no Talmud e no Midrash. Assim, na primeira versão, a Torá diz: "E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea criou-os." (Gênesis 1:27).
Isto parece indicar que o homem e a mulher foram criados simultaneamente.
Por outro lado, a segunda versão afirma explicitamente que Eva foi criada a partir da costela de Adão.
O Talmud levanta esta questão e depois explica que Deus criou o homem e a mulher simultaneamente em pensamento, mas de fato criou Adão primeiro e Eva a partir da costela de Adão.
Os dois relatos do Gênesis se referem a esses dois atos de criação.
Um antigo comentário emprega este conceito para resolver uma contradição haláchica (legal).
No Talmud existe a questão do mundo ter sido criado no mês hebraico de Tishrei ou Nissan. O Talmud afirma que, no tocante a assuntos legais, devemos nos guiar pela opinião de que o mundo foi criado em Nissan.
Isto tem conseqüências práticas, tais como o fato da Bircat ha-Chamá (a Bênção do Sol) ser recitada em Nissan, ao invés de Tishrei.
Ainda assim, o Talmud cita explicitamente que em Rosh Hashaná (Ano Novo) dizemos: "Este dia é o início da Tua obra," porque seguimos a opinião de que o mundo foi criado em Tishrei.
A dificuldade é notada pelos Tossafót, que afirmam (em nome de Rabênu Tam) que em Tishrei o mundo foi criado em pensamento, enquanto em Nissan ele foi criado de fato.
Significativamente, até o "Ari" defende o conceito de que houve duas Criações: uma em pensamento e uma de fato.
Pareceria, então, que os sete dias da Criação descritos na Torá ocorreram em pensamento e não na realidade.
É claro que os pensamentos de Deus não são os mesmos que os nossos, e é possível dizer que a Criação em pensamento, na verdade, se refere à criação dos correspondentes espirituais do mundo físico.
Esta visão se encontra em várias fontes chassídicas.
Assim, pode ser que os sete dias da Criação tenham ocorrido há mais de 15 bilhões de anos, antes do Big Bang.
Isso representou a criação da infra-estrutura espiritual do universo, a que o Talmud se refere como "criação em pensamento".
Depois, o universo se desenvolveu de acordo com o plano de Deus, guiado pela infra-estrutura espiritual que Ele havia criado.
Finalmente, menos de seis mil anos atrás, Deus criou Adão como o primeiro de um novo tipo de ser.
Embora os seres humanos existissem antes de Adão, ele foi o primeiro a adquirir uma sensibilidade espiritual especial e a ser capaz de comunicar-se com Deus.
Num comentário de Rashi (Rabino Shelomo Yits'chaki) há uma alusão a uma criação em pensamento separada.
Rashi afirma que o nome Divino Elokim (Elohim) é usado no primeiro relato da Criação porque Deus se elevou em pensamento para criar o mundo com o atributo da Justiça.
Só mais tarde Deus empregou o Tetragrama (nome Divino composto pelas letras lud-Hê-Vav-Hê), indicando que o atributo da Misericórdia também estava em ação. É significativo, contudo, que o nome Elokim seja usado durante todo o primeiro relato da Criação.
Algumas fontes chassídicas também associam a "criação com justiça" aos mundos que foram "criados e destruídos".
O Sêfer ha-Temuná afirma claramente que o primeiro ciclo sabático foi de justiça inflexível.
Há um outro ensinamento midráshico pertinente, baseado na tradição de que sempre que uma seção da Torá começa com a expressão "E estas" (ve-Êle), ela é uma continuação da seção anterior, ao passo que quando ela começa somente com "Estas" (Êle), ela representa uma quebra em relação à seção anterior.
O Midrash nota que o segundo relato da Criação (Gênesis 2:4) começa com a expressão "Esta" ao invés de "E esta".
Portanto, diz o Midrash, esse relato não deve ser associado ao que é descrito nos versículos que o precedem, pois o relato anterior trata de "vão e vazio"
O Midrash inequivocamente trata os sete dias da Criação como sendo de "vão e vazio'.
 
Conclusão
Como demonstra esta discussão, fontes clássicas da Torá não só mantêm que o universo tem bilhões de anos de idade, como também apresentam o número exato proposto pela ciência moderna.
Há dois relatos da Criação na Torá, o primeiro falando da infra-estrutura espiritual do universo, que se completou em sete dias.
Isso ocorreu há cerca de 15 bilhões de anos, antes do Big Bang.
O segundo relato fala da criação de Adão, que ocorreu há menos de seis mil anos. O que é mais importante é que não há um conflito real entre a Torá e a ciência a respeito dessa questão tão crucial.
Só se pode dizer que os ensinamentos da Torá foram ratificados pelas modernas descobertas científicas.
 
Por: Aryeh Kaplan

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